sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Homilia D Manuel nas exéquias D Armindo


Para o serviço de Deus e a paz entre os homens


“Se alguém estiver ao meu serviço, que me siga; e, onde eu estiver, aí estará também o meu servidor”:

Ouvimos estas palavras de Cristo e com elas se definiu o autêntico itinerário duma vida que se queira cristã. Nas exéquias do Senhor D. Armindo Lopes Coelho, 67º Bispo do Porto desde a refundação da Diocese e 2º Bispo de Viana do Castelo, tais palavras assumem grande realismo.

Quanto à vida cristã em geral, esta só se entende como seguimento de Cristo. Seguimento que signifique identificação profunda, nas circunstâncias e nos sentimentos. Circunstâncias, isto é, em tudo o que suceda do viver ao morrer, nas “variações do tempo e da fortuna”, sempre imprevisíveis no imediato, mas teologalmente suportadas, em fé, esperança e caridade evangélicas.

“Onde eu estiver, aí estará também o meu servidor”: Na verdade, Cristo está “em todo o lado” da existência humana, que inteiramente fez sua, experimentando tudo o que a define e rejeitando tudo o que a contradiga. Nos tempos que correm – como sucedeu nos que passaram -, a maior demonstração do cristianismo estará precisamente aqui, no encontro ou reencontro de Cristo nas mais diversas realidades da vida pessoal e colectiva, porque Ele as fez realmente suas, para as libertar por dentro.

Foi essa também a descoberta de Paulo, como lhe ouvimos na segunda leitura: “Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo ou a espada? […] Em tudo isto, somos nós mais do que vencedores por Aquele que nos amou”.

Em tudo temos tempo e espaço preenchidos pelo amor de Deus, traduzido em incarnação e convivência, como definitivamente aconteceram e acontecem em Cristo. Com todo o realismo das últimas palavras do primeiro Evangelho, que podem ser tomadas como cerne da Boa Nova e autêntico segredo das vidas cristãs: “Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos”.

Não forçaríamos o sentido, se disséssemos que Ele próprio, Cristo, é o fim dos tempos, para todos e para cada um. Tempo é ocasião de descoberta do que somos como pergunta e do que Deus é como resposta.

Rodam anos e séculos, quais desdobramentos progressivos – não isentos de avanços e recuos –, em que nos vamos surpreendendo com o que somos, humanamente falando, e com o que nos é possibilitado, divinamente possibilitado. Por isso e só assim, corresponderemos em qualquer circunstância – como agora o fazemos, junto dos restos mortais do Senhor D. Armindo - à exortação paulina: “Àquele que pode fazer imensamente mais do que pedimos ou imaginamos, de acordo com o poder que eficazmente exerce em nós, a Ele a glória, na Igreja e em Cristo Jesus, em todas as gerações, pelos séculos dos séculos! Ámen” (Ef 3, 20-21).

Para o ilustre prelado portucalense, soam com absoluto realismo as belas palavras dum hino da Liturgia das Horas, que certamente repetiu: “Passa o tempo, corre a vida, / Hora a hora o dia foge; / Mas a fé nos anuncia / Que vem perto o grande encontro”.

Por isso mesmo, a presente celebração não é nostálgica, mas de acção de graças e compromisso evangélico. Acção de graças pela vida e ministério pastoral do Senhor D. Armindo. Na sua incansável aplicação, pulsou forte o coração de Cristo, de quem foi digníssimo sacramento pastoral, em favor do seu povo.

Agradecemos a Deus o dom que concedeu às Igrejas que D. Armindo serviu “até ao fim”. E, se este “fim” de algum modo começou vai para quatro anos, quando a doença interrompeu abruptamente o curso da sua existência habitual e expectável, tal não o excluiu do seguimento de Cristo, antes o radicalizou aí mesmo, na Páscoa existencial e eterna do Senhor da sua vida. Nos últimos tempos, mesmo quando as figuras e os nomes lhe escapavam, mesmo dos que lhe tinham sido mais próximos, aflorava-lhe facilmente um sorriso de grande acolhimento e serenidade. Essencial, digamos, e por isso pascal. E assim partiu em Cristo; e assim entrou na paz.

Celebração de acção de graças e compromisso evangélico. Julguei oportuno trazer aqui três breves citações das últimas homilias do Senhor D. Armindo, quase os seus “discursos de despedida”. É bom que ressoem nas naves desta catedral que foi sua, com uma actualidade que quatro anos não diminuíram, muito pelo contrário. Resumirão o seu legado, reforçando-nos o compromisso. Concretamente em torno de três tópicos maiores, que o eram e continuam a ser, porventura com maior pertinência ainda: a juventude e o seu futuro; a família e a sua prevalência; o sacerdócio e a sua verdadeira grandeza.

A 7 de Maio de 2006 falou aos finalistas universitários. Falou-lhes de Cristo e da vida eclesial, como referências permanentes da vida com os outros e para os outros, onde o futuro pessoal e profissional pode e deve acontecer, afastando egoísmos e exclusões. Há quatro anos, de facto, ainda não seriam tão evidentes as consequências trágicas da contracultura individualista, como a actual “crise” as manifesta. Mas D. Armindo já alertava os finalistas, para que o termo dos seus cursos não significasse o fim da amizade e da convivência, antes as alargasse em vidas solidárias. E isto mesmo a bem do futuro, só assim viável:

“Cristo, o Bom Pastor, e a Igreja, são a defesa contra o isolamento perigoso, contra o individualismo e o egoísmo que ameaçam. Contra a solidão presunçosa e enganadora, contra a competitividade e a competição que sepultam a solidariedade e a amizade. De facto, estes sinais negativos da sociedade que construímos levam à exclusão social, que a todos afecta porque todos somos vítimas, praticando, sofrendo ou sendo testemunhas. Estamos convosco nas preocupações pelo futuro: pelo emprego, pelas condições de vida e de trabalho, pela segurança, pela família, pela alegria transparente e justificada, pelo optimismo, pela esperança” (Homilia na Bênção das Pastas, 7 de Maio de 2006. Igreja Portucalense, nº 11, p. 31).

No mês seguinte falou às famílias, fundamentando-as na própria “familiaridade” divina. De Deus comunhão à família comunhão inter-pessoal, para que a sociedade em geral não perca fundamento e consistência. É um trecho notável pela consistência teológica e a decorrência prática e pedagógica, que muito importa reter. No tempo difícil que vivemos, o fortalecimento das famílias, é inadiável para o futuro que precisamos de alcançar. Assim se revelam as redes familiares, como indispensáveis para a sobrevivência - árdua sobrevivência nalguns casos! -de tantos concidadãos nossos. Oiçamos D. Armindo:

“A condição de Deus Trino e pessoal é a raiz da nossa condição humana de socialidade, sociabilidade e solidariedade. E é por isso que a pessoa humana egoisticamente individual e solitária redunda numa atitude ou condição, mesmo que inconsciente, contra a própria natureza humana, radicalmente sociável e social. […] É neste espírito e contexto que importa reflectir sobre a Família. […] Sendo uma comunidade natural que denota a sociabilidade humana, a família contribui de modo insubstituível para o bem da sociedade, de tal modo que pode considerar-se uma garantia contra qualquer tendência individualista ou colectivista. […] É por isso que se afirma a prioridade da família em relação à sociedade e ao Estado. A família não é para a sociedade e para o Estado. A sociedade e o Estado é que são para a família” (Homilia na Solenidade da Santíssima Trindade – Dia Diocesano da Família, 11 de Junho de 2006. Ibidem, p. 38-39).

Finalmente, nas últimas ordenações sacerdotais a que presidiu nesta Sé, o Senhor D. Armindo deixou-nos palavras que certamente ouvirão com renovado assentimento os novos presbíteros desse dia, como acolheremos nós todos, especialmente os que compartilhamos o sacerdócio ministerial:

“Agora ides vós que sois os apóstolos deste tempo e para este mundo. Ides na pessoa de Jesus (in persona Christi) […], para serdes seus representantes, a sua presença entre o povo. […] Apesar de ataques, marginalizações, desconsiderações e desconfortos, é preciso haver quem ensine o Evangelho e esteja disponível para o ministério de Deus e para a paz entre os homens” (Homilia nas Ordenações Sacerdotais, 9 de Julho de 2006. Ibidem, p.28).

“Para o serviço de Deus e a paz entre os homens”: mais ainda do que uma exortação situada, estas palavras do Senhor D. Armindo podem resumir-lhe a vida inteira: lúcida, serena e dedicada. Essa mesma vida que agora agradecemos a Deus e nos comprometemos a prosseguir na Igreja de Cristo, para bem de todos.

+ Manuel Clemente

Sé do Porto, 30 de Setembro de 2010

2 comentários:

Kaia disse...

Louvo a disponibilidade do João Pedro que nos "representou" nas exéquias de D. Armindo.
Obrigada!
Partilho convosco, algo que ele me disse ontem, quando me contava que ia à Sé ao funeral de D. Armindo.
Foi ele que crismou o JP, no entanto o João não se recordava bem dele e por isso dizia "não tenho memória de D. Armindo mas afinal de contas, foi ele que me crismou, por isso alguma coisa lhe devo".
Não sei porquê (ou se calhar sei...) estas palavras tocaram-me, este sentido de missão e de gratidão.
Perdoa-me a "inconfidência" JP.

Kaia disse...

Para vós, atrevo-me a transcrever para os comentários uma parte do texto da homilia de D. Manuel Clemente que cita D. Armindo:

“Cristo, o Bom Pastor, e a Igreja, são a defesa contra o isolamento perigoso, contra o individualismo e o egoísmo que ameaçam. Contra a solidão presunçosa e enganadora, contra a competitividade e a competição que sepultam a solidariedade e a amizade. De facto, estes sinais negativos da sociedade que construímos levam à exclusão social, que a todos afecta porque todos somos vítimas, praticando, sofrendo ou sendo testemunhas. Estamos convosco nas preocupações pelo futuro: pelo emprego, pelas condições de vida e de trabalho, pela segurança, pela família, pela alegria transparente e justificada, pelo optimismo, pela esperança” (Homilia na Bênção das Pastas, 7 de Maio de 2006. Igreja Portucalense, nº 11, p. 31).

Não vos afasteis desta palavras que, apesar de terem já 4 anos são cada vez mais actuais.

(Hoje estou uma chata...)